Na mão certa
Revista CartaCapital - 21 de janeiro de 2007 - O sucesso no enfrentamento do fenômeno da exploração sexual de crianças e adolescentes nas estradas depende da articulação de redes interorganizacionais de cooperação
Por Thomaz Wood Jr
No século XVIII, Adam Smith cunhou a metáfora da “mão invisível”. O economista queria ilustrar o seguinte fundamento: se os produtores atuarem de forma livre e os compradores tiverem liberdade de escolha, então o mercado operará seu milagre e toda a comunidade sairá ganhando. Paradoxalmente, é uma versão perversa da “mão invisível” que parece estar por trás da exploração sexual comercial de crianças e adolescentes nas estradas brasileiras, uma chaga maior, a qual nenhuma sociedade minimamente civilizada deveria tolerar.
Uma avaliação da Polícia Rodoviária Federal revelou a existência de 30 rotas e 844 pontos de exploração comercial nas rodovias brasileiras. Pode ser apenas a ponta do iceberg. Ao se deparar com a extensão do fenômeno, o observador acidental talvez seja levado a condenar os personagens diretamente envolvidos: os caminhoneiros e as crianças e adolescentes. Ou estenda seu olhar crítico para a ineficiência ou conivência do poder público. Ou culpe as condições de parte considerável da população brasileira e eleja a miséria como causa-raiz, a mãe ingrata de todos os vícios e tragédias.
Entretanto, aqueles que se propuserem a atuar de forma consistente contra o fenômeno devem evitar visões simplistas. Por trás do encontro entre um caminhoneiro e uma criança ou adolescente operam engrenagens de um perverso mercado de vidas humanas. Uma criança ou adolescente na estrada é fruto de um contexto social, econômico, psicológico e cultural, no qual se misturam pobreza sem esperança, desemprego dos pais, desagregação familiar, professores despreparados e, ainda, pequenos sonhos de consumo. Um caminhoneiro que se envolve sexualmente com uma criança ou adolescente traz com sua carga uma vida a enfrentar estradas mal pavimentadas, extensas jornadas de trabalho (eventualmente, sustentadas com estimulantes) e violência. Faltam-lhe informações, a perpetuar valores ambíguos e comportamentos inadequados.
Além desses “personagens principais”, esse drama envolve também inúmeros “atores coadjuvantes”, que, por sua ação criminal, sua passividade ou sua incompetência – ou, ainda, por falta de articulação ou de recursos, mantêm o “mercado” em operação. Entre esses atores estão as quadrilhas de tráfico humano, alguns donos de postos de abastecimento e alguns donos de boates de beira de estrada, que estimulam e organizam o deplorável comércio. Estão também as Varas da Infância e Juventude, Polícia Rodoviária, os Conselhos Tutelares e as ONGs, as quais, apesar de inúmeras iniciativas positivas, ainda não conseguiram gerar impactos suficientes e duradouros. Muitas ONGs, espantosamente, parecem querer manter reserva sobre seus mercados.
A perspectiva da perversa mão invisível leva a duas conclusões. Primeiro, devemos aceitar que iniciativas pontuais e isoladas terão sempre efeitos limitados. Campanhas de sensibilização e aumento do controle policial, por exemplo, têm seus méritos, porém não vão alterar significativamente o funcionamento desse “mercado”. Uma ação consistente contra o drama da exploração de crianças e adolescentes nas estradas do Brasil deve, obrigatoriamente, envolver atividades articuladas nas várias frentes envolvidas. Segundo, devemos reconhecer o papel que a iniciativa privada tem no enfrentamento do fenômeno, em conjunto com o poder público e com as ONGs.
O programa Na Mão Certa, lançado no fim de 2006 pelo Instituto WCF-Brasil (www.wcf.org.br), foi estruturado a partir desses princípios, com três focos principais: articular ações entre o setor público, o setor privado e o terceiro setor; fomentar ações de educação dos caminhoneiros; e apoiar instituições que dão suporte a crianças e adolescentes em situação de risco.
Empresas privadas e suas associações, tais como fabricantes e concessionárias de caminhões, transportadoras e empresas de logística, fabricantes de pneus, lubrificantes e acessórios, proprietários de redes ou de postos de abastecimento, promotores de eventos, sindicatos patronais e de caminhoneiros, e a mídia especializada podem contribuir. Tais organizações estão tão presentes no drama da exploração sexual quanto os demais “atores”. São agentes indiretos, capazes de atuar positivamente no enfrentamento do problema. Além disso, essas organizações têm capilaridade e competência de gestão. Elas são, portanto, capazes de articular e colocar em prática medidas de sensibilização para o fenômeno, de suporte aos caminhoneiros e de mitigação das condições de risco. Cabe aos líderes e formadores de opinião do setor privado alinharem seus recursos em favor dessa causa.
Do site: Direitos do Cidadão
4.1.09
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